segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

78) Anjos e anjos...(1) O perfil ideal...


Final de ano, época natalina, festividades cristãs, tem sempre aquelas imagens tradicionais, bem apropriadas ao momento: Papai Noel, figuras ligadas à natividade, à simbologia cristã, alguns reis magos, presépios e, não há como evitar,... os anjos!
Desde criança sempre fui fascinado por esses personagens singulares da nossa iconografia cristã e natalina. Mesmo sem qualquer demonstração explícita de racismo ou de europocentrismo (tudo isso é implícito, claro), eles são sempre aqueles personagens codificados segundo um design consagrado: bonitos, de cabelos loiros, longas túnicas de cores suaves, com as inevitáveis asinhas brancas nas costas, alguma trombeta aqui e ali e, obviamente, o seu ar angelical...
Não se trata de manifestação recente de marketing, como o Papai Noel da Coca-Cola, mas de aparição antiga, pois nos quadros pré-renascentistas lá estavam eles, do mesmo jeito, com trombetas talvez um pouco mais longas e um ar tão angelical quanto os de hoje, mas às vezes com as perspectivas e os pontos de fuga meio cambaleantes. Eles se tornaram comuns demais, nos dias que correm, havendo até aqueles do gênero feminino que lutam contra meliantes bizarros, inventados por Hollywood.

Eles já não têm hoje o mesmo papel que desempenharam no passado: anunciar grandes mudanças, aparições divinas, libertação dos oprimidos, expulsão do Paraíso ou mesmo, em alguns casos, algumas catástrofes anunciadas de antemão por profetas tidos por malucos. O anjo da anunciação ou, seu contraparte, o anjo vingador combinam com os quadros antigos, um pouco menos com os modernos. No século XX, sem que tal fato tenha a ver com o “Exército da Salvação”, ocorreu uma proliferação de anjos da guarda, protetores das crianças e dos desvalidos, eventualmente alguns bêbados. Por vezes, como nos desenhos de Walt Disney, eles aparecem em dupla: um anjinho com lira e coroa de um lado, um diabinho vermelho com sua cauda em ponta de flecha de outro.
Acho que cada um deveria ter o seu próprio anjo particular, muito embora tem gente que não mereça. Esse pessoal do “caixa 2” dos partidos políticos, eles certamente devem ter vários, pois nunca vão para a cadeia, mas sinceramente eles não mereciam essa distinção. Cegos e estropiados em geral poderiam ficar com uma quota extra, alocando-se a eles os que retiraríamos desses bandidos dos “recursos não contabilizados”.
De minha parte, deixei de acreditar em anjos muito cedo, mas confesso que uma volta atrás não seria de todo mau, pois que acreditar em sua existência não implicaria, necessariamente, a (re)adesão a uma religião em particular, pois os anjos, como qualquer fenômeno de marketing, prescindem de alguma mensagem espiritual mais elevada. A prova é dada pelo próprio Natal, cada vez menos um festa religiosa, cada vez mais uma festa tout court, com o lado dos presentes e das comilanças suplantando o espírito da natividade e dos valores cristãos.

O que eu esperaria de meu anjo, se ele se materializasse na minha frente? Deixo de lado o gênero, para não ser acusado de qualquer perversão, e passo imediatamente às qualidades angelicais que imagino possam estar registradas em sua carteira de trabalho. Em primeiro lugar, ele deveria ter olhos vivos e brilhantes e sorriso sempre à mostra, o que significa um bom começo, para empatia recíproca. Depois, eu faria um pequeno teste de conhecimento histórico, para ver se o “meu” anjo conhece seus antecedentes bíblicos e suas várias encarnações ao longo dos tempos. Não sou nada religioso, mas tenho grande respeito pelas religiões e acho que a cultura religiosa é indispensável a qualquer cidadão que se pretenda humanista e iluminista (pode ser uma contradictio in adjecto, mas prefiro assim do que um anjo sem cultura religiosa, pois aí, sim, que seria uma contradição).
Em terceiro lugar, ele precisaria vir animado de uma forte disposição para aguentar discussões filosóficas, debates teóricos, conversas bizantinas (ma non troppo), tertúlias acadêmicas e outros embates intelectuais, com eventuais notas de rodapés e referências bibliográficas acompanhando as legendas ou os “balõenzinhos” de nossas conversas (sim, a cenografia é importante, pois anjos verdadeiros não vivem fora dos cenários adequados: ninguém imagina, por exemplo, um anjo numa mesa de botequim, embora isso não seja impossível). Finalmente, esse candidato a meu anjo particular não poderia ter reivindicações trabalhistas – como férias, décimo-terceiro, licença remunerada e outros direitos conquistados na luta de classes dos últimos dois séculos – ou sequer horário de oito horas e semana de cinco dias. Anjo tem de ser em tempo integral, como corresponde ao sentido de sua nobre missão.

A bem da verdade, acho que já conquistei um anjo particular, mas ele vive em um universo paralelo, numa dimensão própria, ou está protegido por alguma redoma virtual, e com ele falo – ou imagino falar – regularmente, na minha própria imaginação. Seu sorriso “angelical”, seus olhos brilhantes, assim como os seus cabelos correspondem inteiramente àquelas imagens estilizadas a que já nos acostumamos, mas não posso ser culpado de nada: apenas sigo as tendências dominantes na arte ou na publicidade. Tive sorte, claro, e nem tive de procurar muito, já que o meu anjo simplesmente apareceu, numa dessas aparições de tipo bíblico, sem que eu saiba explicar como ou por quê.
Espero que ele não me abandone, dada minha forte propensão ao debate, por vezes interminável, meu espírito altamente crítico e minhas exigências quanto a conteúdo e substância. Nunca aceito o argumento da autoridade – como os anjos devem gostar de invocar – mas apenas a autoridade do argumento, o que me garante, justamente, algumas diatribes com quem se julga autoridade (estrito senso). Meu anjo não pode simplesmente me proteger, ele tem de provar que a relação de custo-benefício indica ser essa a melhor solução em face de recursos escassos e de usos alternativos dos fatores de produção. Ele não pode ser simplesmente espiritual, mas tem de embasar essa espiritualidade num forte substrato de racionalidade, estilo grego, se é que percebem, ou então de acordo com a tradição empirista anglo-saxã.

Com tudo isso, o meu anjo não pode ser um chato, como costumam ser alguns “intelectuais” (ou candidatos a tal). Ele também não precisa vir de camisolão – sinceramente ridículo – e dispenso as asas, pois hoje em dia o carro não é uma má opção. Estou pronto a compartilhar com ele a minha biblioteca, mas tenho de avisar que nunca aprendi aramaico, hebraico antigo ou grego, as supostas línguas bíblicas. Pode aposentar a lira, mas adoro saxofone e os ritmos de jazz em geral. Bandolim e chorinho também são aceitáveis, junto com uma boa disposição para ficar acordado madrugada adentro, noites à fio. Minha produção geralmente começa depois da meia noite e vai até onde o corpo e o espírito aguentarem. Algum anjo se habilita? Candidatos munidos de currículo Lattes, por favor...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de dezembro de 2006

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