domingo, 1 de janeiro de 2006
105) Uma agenda ainda válida para o século XXI?
As propostas de 1988 dos prêmio Nobel revisitadas em 2006
Paulo Roberto de Almeida
Meu primeiro trabalho elaborado em meu próprio computador pessoal, então o pioneiro Macintosh Plus, foi este aqui, em fevereiro de 1988, consistindo em um breve texto de comentários às 16 propostas elaboradas por 75 cientistas e personalidades do mundo literário agraciados com o Prêmio Nobel, reunidos em Paris sob a iniciativa do humanista polonês Elie Wiesel.
A razão de retomá-lo aqui é dupla. Primeiro, pretendo prestar homenagem a esse nobre instrumento da escrita contemporânea, no meu caso uma pluma eletrônica que levava o simpático apelido de Mac Plus. Em segundo lugar, cabe verificar se aquelas propostas elaboradas dezoito anos atrás ainda guardam validade para os nossos tempos.
Procederei da seguinte maneira: primeiro transcreverei o teor completo de meu texto, com as 16 propostas anexas, e depois aduzirei novos comentários, pertinentes ao atual contexto da globalização (uma expressão então praticamente desconhecida).
A) Transcrição do texto de fevereiro de 1988:
“A Conferência dos Prêmios Nobel: Uma agenda para o Século XXI?”
Reunidos em Paris no período de 18 a 21 de Janeiro de 1988 para discutir sobre as “ameaças e promessas no alvorecer do Século XXI”, 75 Prêmios Nobel de 31 diferentes países divulgaram o resultado de seus trabalhos sob a forma de 16 conclusões e recomendações relativas aos mais importantes problemas da atualidade internacional deste final de século (vide lista).
A iniciativa do Prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel, escritor judeu de naturalidade polonesa, foi sem dúvida alguma meritória, mesmo se cabe questionar a representatividade intrínseca de cientistas e homens de letras de origens as mais diversas (com maciça predominância norte-americana) e sua competência específica para debater problemas complexos que nos afetam a todos, mas de maneira variada. Uma vez que se reconhece, porém, a um biólogo o direito de apresentar propostas, enquanto cidadão, sobre problemas do desarmamento ou da educação, ou a um homem de letras o de argumentar sobre a melhor maneira de resolver o problema da dívida do Terceiro Mundo ou de acelerar a transferência de tecnologia em favor dos países em desenvolvimento, pode-se concordar em que o impacto mediático de uma conferência de laureados representa uma boa maneira de, mais uma vez, chamar a atenção da opinião pública ou dos homens de Estado para algumas das questões mais cruciais da agenda mundial.
O problema essencial, contudo, deve ser colocado da seguinte forma: as propostas dos Nobel são condizentes com a natureza das “ameaças” percebidas e suas recomendações caminham realmente em direção das “promessas” do século XXI? Se a principal qualidade de um bom cientista é a de ser um pouco “visionário”, isto é, de saber antecipar-se aos desafios futuros, as “conclusões” dos Prêmio Nobel devem ser julgadas à luz de sua adequação aos cenários desenhados para o próximo milênio, ou seja, segundo sua capacidade de realizar, nos termos do filósofo alemão Koselleck, uma “projeção utópica do futuro”.
Em outros termos, a agenda que os Nobel levantam hoje para os homens do presente corresponde efetivamente às necessidades de desenvolvimento das sociedades do futuro e as recomendações propostas representam algo mais do que simples manifestação de boa-vontade de homens desvinculados de tarefas executivas ou responsabilidades governamentais? Subsidiariamente, se poderia também indagar se os “remédios” propostos levam em consideração os meios atualmente disponíveis ou a organização social e política do sistema inter-estatal contemporâneo, bem como a relação de forças nele predominante.
AS 16 PROPOSTAS DA CONFERÊNCIA DOS NOBEL
1. Todas as formas de vida devem ser consideradas como um patrimônio essencial da Humanidade. Causar dano ao equilíbrio ecológico constitui portanto um crime contra o futuro.
2. A espécie humana é única e cada indivíduo que a compõe tem os mesmos direitos à liberdade, à igualdade e à fraternidade.
3. A riqueza da Humanidade está também na sua diversidade. Ela deve ser protegida em todos os seus aspectos: cultural, biológico, filosófico e espiritual. Para isso, a tolerância, a atenção a outrém, a recusa das verdades definitivas devem ser incessantemente lembradas.
4. Os problemas mais importantes que a humanidade enfrenta atualmente são ao mesmo tempo universais e interdependentes.
5. A ciência é um poder. O acesso à ela deve ser igualmente repartido entre os indivíduos e os povos.
6. O fosso existente em muitos países entre a comunidade intelectual e os poderes públicos deve ser reduzido. Cada um deve reconhecer o papel do outro.
7. A educação deve tornar-se prioridade absoluta de todos os orçamentos e deve contribuir para valorizar todos os aspectos da criatividade humana.
8. As ciências e tecnologias devem estar à disposição de todos, especialmente dos países em desenvolvimento, de forma a permitir-lhes o controle de seu próprio destino e a definição dos conhecimentos que julguem necessários a seu futuro.
9. Se a televisão e os novos meios de comunicação constituem um instrumento essencial de educação para o futuro, a educação deve ajudar a desenvolver o espírito crítico em relação ao que é divulgado nesses meios.
10. A educação, a alimentação e a prevenção são os instrumentos essenciais de uma política demográfica e de redução da mortalidade infantil. A generalização do uso das vacinas existentes e o desenvolvimento de novas vacinas devem constituir a tarefa comum dos cientistas e dos homens políticos.
11. Todas as pesquisas relativas à prevenção e ao tratamento da AIDS devem ser partilhadas e estimuladas, sem bloqueios ou barreiras, especialmente através da cooperação da indústria farmacêutica. Uma vez disponível, a vacina contra a AIDS deve ser assegurada pelos poderes públicos.
12. A biologia molecular, que por seus recentes avanços permite prever progressos na medicina e no isolamento da dimensão genética de certas doenças, deve ser estimulada, o que permitirá prever e talvez curar essas doenças.
13. O desarmamento dará um estímulo significativo ao desenvolvimento econômico e social, tendo em vista os recursos limitados do mundo, atualmente drenados pela indústria armamentista.
14. Nós pedimos a organização de uma conferência internacional para tratar em seu conjunto do problema da dívida do Terceiro Mundo, obstáculo ao seu desenvolvimento econômico e político.
15. Os governos devem comprometer-se sem ambiguidades e de maneira legalmente vinculatória com o respeito aos direitos do homem, assim como aos tratados por eles ratificados.
16. A conferência dos laureados do Nobel se reunirá novamente dentro de dois anos para estudar estes problemas. No intervalo, se uma urgência se manifestar, vários Nobel poderão reunir-se localmente, ou em todos os lugares onde os direitos do homem estiverem ameaçados.”
(Fim da transcrição; nota sobre o trabalho: 156. “A Conferência dos Nobel: Agenda para o Século XXI?”, Paris, 22 de Janeiro de 1988; Genebra, 21 fevereiro 1988, 3 pp. Artigo sobre a reunião de 75 Prêmios Nobel em Paris, de 18 a 21/01/88 e de análise crítica das conclusões. Não concluído. Anexo: Propostas da Conferência.)
B) Comentários PRA em janeiro de 2006:
Creio que a maior parte das propostas se sustenta, ainda hoje, muito embora seu caráter “ultra-otimista” já fosse passível de algumas críticas naquele mesmo momento. As três primeiras apresentam, em minha opinião, caráter universalemente válido e não são passíveis de qualquer restrição ou comentário, mas a partir daí tenho qualificações ou condicionantes a agregar, que explicito a seguir.
“4. Os problemas mais importantes que a humanidade enfrenta atualmente são ao mesmo tempo universais e interdependentes.”
PRA: Os problemas mais importantes não estão expressamente referidos – embora alguns deles figurem nos tópicos seguintes –, mas creio que eles podem ser resumidos da seguinte forma: segurança, paz, bem estar e igualdade de chances. A segurança e a paz fizeram enormes progressos no mundo, depois que os cientistas e literatos se reuniram em Paris, no início de 1988. O comunismo acabou e com ele a ameaça de um enfrentamento praticamente suicidário entre as duas grandes potências atômicas. As guerras que subsistem são residuais – com uma ou outra exceção – ou reduzidas ao contexto regional e civil interno. O desenvolvimento social também conheceu enormes avanços, muito embora subsistam zonas de fome endêmica, geralmente naqueles contextos de conflitos civis e político, e alguns casos de privação epidêmica, dados os desequilíbrios ambientais criados pelo homens, também em grande medida coincidentes com as zonas de conflito.
A igualdade de chances não é, infelizmente, muito bem disseminada no mundo, mas isso não quer dizer que se trata de um problema “ao mesmo tempo universal e interdependente”, uma vez que a responsabilidade pela educação dos cidadãos – fator primordial da igualdade de oportunidades – permanece indefectivelmente com os Estados nacionais. Não se concebe, neste momento, processos universais de educação e capacitação técnica, pois isso poderia ser assimilado à “desculturação” ou mesmo ao “etnocídio”. Sim, infelizmente, a ditadura do “politicamente correto” e outras inovações típicas dos anti-globalizadores inviabiliza uma diminuição do grau de soberania estatal associada aos processos de educação e socialização para o trabalho.
“5. A ciência é um poder. O acesso à ela deve ser igualmente repartido entre os indivíduos e os povos.”
PRA: Interessante como proposta, mas algo ingênua. Se a ciência é um poder, então ela nunca será repartida igualmente entre os povos, uma vez que a humanidade não se encontra suficientemente homogeneizada, ou livre de perigos residuais, para que o poder seja repartido de forma equânime. Isso não vai ocorrer antes de muito tempo.
Mas, mesmo que a ciência não fosse um poder, e sim um simples instrumento de poder – o que redunda quase no mesmo –, ainda assim não haveria condições de “dispensá-la” de forma igualitária entre todos os povos e indivíduos. As condições de sua produção implicam custos e ônus para os que investem nessa atividade, o que deve ser de alguma forma compensado. Por isso que à essa produção estão associados mecanismos de monopolização – patentes e outros títulos proprietários – que são a contrapartida indispensável ao investimento inicial.
De forma geral, entretanto, os avanços propriamente científicos já se encontram à disposição de todos, de forma livre e irrestrita, apenas a tecnologia sendo objeto de apropriação monopólica.
“8. As ciências e tecnologias devem estar à disposição de todos, especialmente dos países em desenvolvimento, de forma a permitir-lhes o controle de seu próprio destino e a definição dos conhecimentos que julguem necessários a seu futuro.”
PRA: Os mesmos comentários acima valem para esta proposta também. Cientistas e literatos, em especial os agraciados com o Prêmio Nobel, deveriam saber o que custa chegar a uma resultado “premiável”: anos e anos de pesquisas, despesas imensas para resultados por vezes frustrantes, sem contar os falsos caminhos e os ensaios fracassados. Os literatos devem gostar de viver de direitos autorais, do contrário teriam de procurar outro meio de vida. Colocar algo que custou muito à livre disposição de terceiros significaria que existe sim “almoço grátis”, o que parece contradizer um dos princípios econômicos mais elementares.
“12. A biologia molecular, que por seus recentes avanços permite prever progressos na medicina e no isolamento da dimensão genética de certas doenças, deve ser estimulada, o que permitirá prever e talvez curar essas doenças.”
PRA: Esses progressos científicos, como o das pesquisas com células-tronco, que alcançaram igualmente, no plano tecnológico, a melhoria genética dos alimentos (plantas e animais), vêm sendo infelizmente obstaculizados por fundamentalistas religiosos e outros fundamentalistas ecológicos, que brandem argumentos não científicos para impedir esses avanços. Os cientistas deveriam esforçar-se mais para vulgarizar o conhecimento técnico, afastando os aspectos religiosos e ideológicos que dificultam sua disseminação.
“14. Nós pedimos a organização de uma conferência internacional para tratar em seu conjunto do problema da dívida do Terceiro Mundo, obstáculo ao seu desenvolvimento econômico e político.”
PRA: Esse problema já foi praticamente encaminhado, ao longo das duas últimas décadas, com a renegociação das dívidas dos países emergentes – o que implicou algum desconto do valor face – e o cancelamento unilateral ou negociado das dívidas dos países mais pobres. Caberia registrar, contudo, que o problema da dívida não é uma perversão do sistema financeiro internacional, e sim o resultado de fatores contingentes e outros imponderáveis, numa relação quase simétrica, de disponibilidade de liquidez do lado dos credores – que atuam de forma irresponsável, pelo desejo de lucro – e de demanda excessiva por parte dos tomadores, que também atuam de forma irresponsável ao contratarem encargos acima de suas possibilidades. Trata-se de velho e recorrente problema, que não deixará de conhecer novos episódios no futuro.
Brasília, 1º de janeiro de 2006
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